Data de leitura: 31-03-2024
a 07-04-2024 Nome: Luísa FRESTA
Ficha de leitura
Título: O
VENTO CONHECE O MEU NOME
Autor: Isabel
Allende[1]
Editora: Porto
Editora ©
Coleção/ Edição: -
Ano de publicação: 2023
Género literário: Romance
Tradução: Carla Ribeiro
Número de páginas: 268
Resumo: Em janeiro deste mesmo ano escrevi umas
notas sobre VIOLETA, o anterior romance de Isabel Allende. Tenho sempre alguma
dificuldade em separar-me de uma obra e de um autor, quando acabo de ler um
livro. Desta vez não foi diferente. Por esse motivo andei a adiar a leitura do
epílogo, temendo (e ao mesmo tempo desejando) encontrar algumas explicações e
soluções sobre questões que vinham sendo adiadas, como costuma acontecer com os
grandes narradores, até quase ao desfecho.
O VENTO
CONHECE O MEU NOME cativa desde o primeiro parágrafo. Ao longo dos vários
capítulos vamos conhecendo as personagens (por vezes pela sua própria voz), as
circunstâncias, sempre com períodos marcantes da História universal como pano de
fundo, como os primórdios e os despojos da II Guerra Mundial, na Europa. Isabel
Allende é uma escritora rigorosa que respeita a verdade histórica, malha sobre
a qual vai tecendo os seus enredos sempre muito convincentes, realistas e mesmo
assim surpreendentes e extraordinários.
Quase nada
será verdade absoluta, mas quase tudo é possível e provável, recorrente, uma
quase transcrição de múltiplas realidades. Muitas vidas e acontecimentos se
escondem por trás das personagens e dos seus dramas familiares e sociais.
Romancear talvez seja a arte de contar verdades com mentiras. Os franceses
chamariam a isto uma “boutade” (um dito vivo, imprevisto, original, que
roça o paradoxo), mas é esse tipo de sensação que o romance sugere.
Isabel
Allende é uma romancista moldada pelo jornalismo e pelo ativismo social; e isso
fez dela, desde há muitas décadas, uma fabulosa narradora, muito atenta ao
pormenor, que não deixa nada ao acaso. Como narradora não julga nem opina de
forma descabida ou moralista, mas expõe, denuncia, esclarece. As opiniões,
caprichos, atitudes, excentricidades e linhas de conduta ficam por conta das suas
criaturas. Neste romance temos um leque riquíssimo, o “elenco” inclui várias
crianças e famílias vítimas de violências diversas, inomináveis. Do Holocausto
aos crimes silenciados, branqueados e perpetrados pelos Estados ou por bandos e
bandidos organizados, por eles protegidos e armados, atos coletivos ou
individuais que constituem vergonhas e tragédias humanitárias e deixam um rasto
de cinza e cicatrizes perpétuas. Crueldade que, infelizmente, se mantém e
aperfeiçoa cinicamente ainda nesta época que nos cabe viver, um pouco por todo
o mundo.
A autora
homenageia, neste romance, todas essas crianças e famílias que ao longo dos
tempos têm sido martirizadas também pela indiferença humana que por vezes
assume forma de lei, deslocados, refugiados, pessoas que nada têm a perder e
que arriscam tudo porque não têm nada, ou quase nada. Apenas dignidade, amor, instinto maternal/paternal
e de sobrevivência.
Samuel é um
menino introvertido e particularmente dotado para a música que sobrevive à
perseguição e extermínio em massa de judeus na sua Áustria natal, sendo
obrigado a deixar para trás a sua família. Anita é uma criança doce e
inteligente que foge, com a sua mãe, de El Salvador, tentando escapar à
perseguição impiedosa de um assassino e violador obsessivo protegido pelo
sistema. Letizia é também uma criança
salvadorenha que, a certa altura da sua infância, é obrigada a deixar o seu
país e a memória dos seus com o único membro da família que ainda lhe resta: um
pai extremoso, heroico e abnegado. De que fogem as pessoas? Da violência de gangues, bandos (como as maras
de El Salvador), de multidões enlouquecidas e impunes, do terrorismo de Estado,
do genocídio, da xenofobia, da condenação por crime de pobreza.
Todas estas
crianças estão unidas na narrativa pelo signo sombrio da tragédia, todas eles
tentarão reconstruir-se, com a ajuda de outras pessoas, numa atmosfera de afeto
e compreensão. Por amor, os pais arriscam a vida e sujeitam-se a perigos
incalculáveis. Arriscam a vida, arriscam a morte, pensando apenas em poupar os
filhos, em oferecer-lhes um futuro. Esta tem sido a história das migrações,
mais propriamente dos refugiados, sendo que o romance não se debruça tanto
sobre a emigração por motivos económicos.
Nesta
narrativa fala-se sobretudo de circunstâncias extremas e dilemas éticos, da
fronteira entre a decência e a legalidade, a qual também varia consoante a
perspectiva dos governos. Outrossim, a narradora dá espaço para uma
interpretação mais conservadora ou legalista relativamente ao acolhimento dos imigrantes,
à avaliação e julgamento de cada caso, ao papel do governo americano, colocando
essa argumentação na boca das personagens que acabam por explicar os
fundamentos das leis e as práticas instituídas, muitas vezes pautadas por
alguma assimetria e dependentes da boa vontade das pessoas-chave nas
instituições.
Em todo o
caso, parece consensual que, em nenhuma circunstância, os pais deveriam ser separados
de filhos menores, as crianças deveriam ser interrogadas como adultos, nem as
pessoas deveriam ser retidas em locais com total falta de condições, incluindo
temperaturas baixíssimas e pouco compatíveis com a vida humana.
A atividade
da romancista e defensora dos direitos humanos na sua Fundação (Fundação Isabel
Allende, que apoia, designadamente, mulheres, em vários países do mundo) também
lhe dá acesso privilegiado a material valiosíssimo para construir narrativas
como esta, que, sendo arte e entretenimento, também são instrumentos de
denúncia e apelo à reflexão. Se o leitor for, como eu, bastante curioso e ler
os agradecimentos e considerações finais da obra, irá encontrar numerosas
referências a pessoas e instituições envolvidas na construção deste romance,
que ajudaram certamente a conferir-lhe o realismo que também procurarmos, na
dose certa, nas narrativas de ficção.
O romance é ainda uma, ou várias, belíssimas histórias de amor: amor romântico, cumplicidade, ternura, desejo, amizade e paixão. Todas as variantes e componentes desse sentimento indefinível estão presentes e ajudam a viciar ainda mais o leitor. As pessoas são imperfeitas, volúveis, incoerentes, e os casais são-no também. Acontece passarem por situações que, em teoria, seriam inaceitáveis ou dolorosas, mas que, surpreendentemente, não os encaminham para ruptura alguma. Também não os aproximam necessariamente, talvez apenas os ensinem a amar-se com mais cerimónia, pudor e respeito e transformem o amor numa proximidade suave e lúcida difícil de explicar, mas que melhora significativamente a convivência e proporciona tranquilidade. Nadine e Samuel são disso exemplo.
Outras
relações e ideias são exploradas magistralmente neste romance: a intimidade
entre amigos, que pressupõe o respeito pelo espaço vital. Os objetivos comuns,
que solidificam as uniões matrimoniais. A importância dos animais nas rotinas
familiares, junto das crianças e dos idosos. Os laços de sangue e os laços
construídos, o instinto de proteção ou o sentido de justiça, a importância da
arte na educação das crianças e na construção da felicidade. A autoestima, o
medo agudo, o pânico, a pedofilia, as redes de apoio sociais, o peso da
habituação nas relações longas, que tanto pode reforçá-las como destruí-las
irremediavelmente.
Quanto às
épocas e locais, o leitor irá encontrá-los mais abaixo neste texto: é um hábito
que se vem impondo naturalmente em algumas resenhas e que me tem ajudado a
situar-me. Prepare-se para visitar várias épocas em poucos dias: aperte o
cinto, leitor, e esteja atento aos solavancos. Sobre os locais, não poderia
deixar de referir as casas descritas no romance: sou uma apaixonada por estes
pormenores, gosto de conhecer as casas por dentro, de saber como se distribuem
os quartos, quem lá vive, como são as colchas e os quadros, que cheiros vivem
na cozinha e que plantas há nos jardins, gosto de ver o cotão e o pó dos sótãos
e de saber que segredos e memórias contêm, nos diários, nos livros, nas roupas
e nos perfumes que as mulheres deixam por acabar e acabam por deixar.
Finalmente
O VENTO CONHECE O MEU NOME é também uma frase proferida por uma personagem
fulcral deste belíssimo romance: quase sempre o título está escondido entre as
centenas de páginas das boas histórias e, no meu caso, foi uma alegria
encontrá-lo dito com tanta doçura por alguém, depois de eu própria ter repetido
estas palavras em silêncio.
[1] Biografia da autora: “Isabel Allende nasceu em 1942, no Peru. Passou a
primeira infância no Chile e viveu em vários lugares na adolescência e
juventude. Depois do golpe militar de 1973 no Chile, exilou-se na Venezuela e,
desde 1987, vive como imigrante na Califórnia. Define-se como “eterna
estrangeira”.
Iniciou a carreira de jornalista, no Chile e na Venezuela.
Em 1982, o seu primeiro romance, A casa dos espíritos,
transformou-se num dos míticos livros da literatura latino-americana. A este
romance seguiram-se muitos outros, alcançando sucesso internacional. A sua obra
foi traduzida em 40 línguas e vendeu mais de 75 milhões de exemplares, sendo a
escritora mais lida em língua espanhola.
Recebeu mais de 60 prémios internacionais, entre os quais o Prémio Nacional de
Literatura do Chile, em 2010, o Prémio Hans Christian Andersen, na Dinamarca,
em 2012, pela sua trilogia As memórias da águia e do jaguar, e a
Medalha da Liberdade, nos Estados Unidos, a mais alta distinção civil, em 2014.
Em 2018, Isabel Allende tornou-se a primeira escritora de língua espanhola
premiada com a medalha de honra do National Book Award, nos Estados Unidos,
pelo seu enorme contributo para o mundo das letras.”
Fonte: https://www.wook.pt/autor/isabel-allende/7870 (e badana do
livro)
Adicionar um comentário